UM CONTO DE DUAS CONSTITUIÇÕES
A história das constituições mexicana e estado-unidense e as raízes das suas enormes diferenças, texto extraído do livro "Porque as Nações Fracassam".
A essa altura, já deve estar evidente que não é coincidência o fato de terem sido os Estados Unidos, e não o México, a adotar e promulgar uma constituição que esposava princípios democráticos, impunha limitações ao uso do poder político e distribuía tal poder pela sociedade, de maneira ampla. O documento, que fez os delegados reunirem-se para redigir na Filadélfia, em maio de 1787, foi resultado de um longo processo, iniciado com a formação da Assembleia Geral em Jamestown, em 1619.
É gritante o contraste entre o processo constitucional que se deu por ocasião da independência dos Estados Unidos e o ocorrido no México pouco tempo depois. Em fevereiro de 1808, o exército francês de Napoleão Bonaparte invadiu a Espanha. Em maio, havia tomado Madri, a capital do país. Em setembro, o rei espanhol Fernando fora capturado e havia abdicado. Uma junta nacional, a Junta Central, ocupou seu lugar, assumindo a incumbência de fazer frente aos franceses. A Junta reuniu-se pela primeira vez em Aranjuez, mas recuou para o sul diante do avanço das tropas napoleônicas. Por
fim, chegou ao Porto de Cádiz, que, apesar de sitiado pelas forças francesas, resistiu.
Aqui a Junta formou um Parlamento, chamado de Cortes. Em 1812, as Cortes produziram o que ficaria conhecido como Constituição de Cádiz, que determinava a introdução de uma monarquia constitucional, com base em ideias de soberania popular. Exigia também o fim de privilégios especiais e a introdução da igualdade perante a lei. Todas essas demandas eram anátemas aos olhos das elites da América do Sul, que ainda dominavam um ambiente institucional baseado nas encomiendas, nos trabalhos forçados e no poder absoluto de que elas e o Estado colonial eram revestidos.
O colapso do Estado hispânico em decorrência da invasão napoleônica engendrou uma crise constitucional em toda a América Latina colonial. O reconhecimento ou não da autoridade da Junta Central foi objeto de muita controvérsia e, em resposta, muitos latino-americanos começaram a formar suas próprias juntas. Era apenas questão de tempo até que vislumbrassem a possibilidade de se tornarem efetivamente independentes da Espanha. A primeira declaração de independência veio à luz em La Paz, Bolívia, em 1809, embora tenha sido rapidamente esmagada por tropas espanholas enviadas do Peru. No México, as atitudes políticas da elite haviam sido moldadas pela Revolta de Hidalgo, liderada em 1810 por um sacerdote, Padre Miguel Hidalgo.
Quando os homens de Hidalgo saquearam Guanajuato, em 23 de setembro, mataram o intendente e o oficial colonial superior, e puseram-se a matar todos os brancos, indiscriminadamente. Foi mais uma guerra de classes, ou mesmo étnica, do que um movimento de independência, com o efeito de unir todas as elites para fazer-lhes frente. Se a independência possibilitasse a participação popular na política, as elites locais, e não só os espanhóis, seriam contra. Por conseguinte, as elites mexicanas viram a Constituição de Cádiz, que abria caminho para a participação popular, com extremo ceticismo, e jamais reconheceram sua legitimidade.
Em 1815, com o colapso do império europeu de Napoleão, o Rei Fernando VII voltou ao trono e a Constituição de Cádiz foi anulada. Ao tentar retomar o controle de suas colônias na América, a Coroa espanhola não enfrentou maiores problemas no México legalista. Ainda assim, em 1820, tropas hispânicas reunidas em Cádiz com destino às Américas, a fim de ajudar a restabelecer a autoridade espanhola, amotinaram-se contra Fernando VII. A elas logo se juntaram unidades do exército de todo o país, e Fernando viu-se compelido a restaurar a Constituição de Cádiz e voltar a convocar as Cortes – que, nessa reedição, mostraram-se ainda mais radicais do que aquelas que haviam redigido a Constituição de Cádiz, propondo a abolição do trabalho forçado em todas as suas formas. Atacavam também os privilégios especiais, como, por exemplo, o direito dos militares de serem levados a julgamento criminal em tribunais próprios. Finalmente confrontadas com a imposição desse documento no México, as elites locais decidiram que seria melhor continuar por conta própria e declarar a independência.
Augustín Iturbide, conhecido como consumador da Independência Mexicana |
Esse movimento de independência foi encabeçado por Augustín de Iturbide, exoficial do Exército espanhol que, em 24 de fevereiro de 1821, publicou o Plano de Iguala, sua visão de um México independente. O plano incluía uma monarquia constitucional com imperador mexicano e removia as provisões da Constituição de Cádiz que as elites locais consideravam tão perigosas para seu status e privilégios. Recebeu apoio instantâneo, e a Espanha logo reconheceu que não poderia impedir o inevitável. Contudo, Iturbide não se limitou a organizar a secessão mexicana. Detectando o vácuo de poder, tratou de tirar proveito de sua formação militar e fez-se declarar imperador, posição que o grande líder da independência sul-americana Simón Bolívar descrevia como “por graça de Deus e das baionetas”. Iturbide não era limitado pelas mesmas instituições políticas que restringiam os presidentes dos Estados Unidos; rapidamente se converteu em ditador e, em outubro de 1822, dissolveu o Congresso sancionado pela Constituição e o substituiu por uma junta de sua escolha. Embora Iturbide não tenha durado muito, esse padrão de acontecimentos se repetiria vezes sem
conta no México do século XIX.
Retrato de Augustín de Iturbide |
A Constituição dos Estados Unidos não criou uma democracia pelos padrões modernos. Cabia a cada estado determinar quem seriam os eleitores. Assim, embora os estados do norte logo tenham estendido o direito ao voto a todos os homens brancos, independentemente de sua renda ou propriedades, apenas aos poucos os do sul mostrariam a mesma prodigalidade. Nenhum deles reconhecia os direitos de mulheres ou escravos e, à medida que os brancos iam sendo liberados das limitações relativas a propriedade e riqueza, eram adotadas restrições raciais que destituíam explicitamente os negros de todo e qualquer direito. A escravidão, é claro, foi considerada legítima quando a Constituição dos Estados Unidos foi escrita na Filadélfia e teve lugar a mais sórdida das negociações com relação à divisão dos assentos na Câmara de Representantes entre os estados. A alocação se daria de acordo com a população de cada estado, mas os representantes do sul solicitaram que os escravos fossem contabilizados. Os nortistas objetaram. Chegou-se ao acordo de que, para fins de distribuição dos assentos na Câmara dos Representantes, cada escravo contaria como três quintos de uma pessoa livre.
Os conflitos entre o Norte e o Sul dos Estados Unidos foram reprimidos durante o processo constitucional mediante a elaboração de pactos como essa regra dos três quintos e similares. Novos ajustes seriam acrescentados com o passar do tempo – como, por exemplo, o Acordo do Missouri, segundo o qual um estado favorável à escravidão e outro contrário seriam sempre agregados juntos à União, de modo a manter o equilíbrio, no Senado, entre as duas posições. Foi graças a esses subterfúgios que as instituições políticas dos Estados Unidos mantiveram-se em funcionamento pacífico até que a Guerra de Secessão viesse solucionar os conflitos em favor do Norte.
A Guerra de Secessão foi sangrenta e destrutiva. Tanto antes quanto depois dela, porém, havia um sem-número de oportunidades econômicas para uma vasta parcela da população, sobretudo no norte e no oeste dos Estados Unidos. No México, a situação era outra. Se os Estados Unidos experimentaram cinco anos de instabilidade política, entre 1860 e 1865, o México viveu um quadro quase permanente de instabilidade nos 50 primeiros anos de sua independência – o que é mais bem ilustrado pela trajetória de Antonio López de Santa Ana.
Santa Ana, filho de um dignitário colonial em Veracruz, destacou-se como soldado lutando pela Coroa espanhola nas guerras de independência. Em 1821, mudou de lado com Iturbide e jamais olhou para trás. Tornou-se presidente do México pela primeira vez em maio de 1833, embora tenha permanecido no poder por menos de um mês, preferindo deixar o exercício do cargo para Valentín Gómez Farías. O mandato de Gómez Farías duraria 15 dias, ao fim dos quais Santa Ana retomou o poder. Todavia, sua segunda presidência foi tão breve quanto a primeira e, no começo de julho, ele foi novamente substituído por Gómez Farías. Santa Ana e Gómez Farías continuariam sua dança até meados de 1835, quando Santa Ana foi substituído por Miguel Barragán. Santa Ana, porém, não era de desistir. Retornou à presidência em 1839, 1841, 1844, 1847 e, por fim, entre 1853 e 1855. No total, foi presidente 11 vezes, no decorrer das quais assistiu à perda do Álamo e do Texas e à desastrosa Guerra Mexicano- Americana, que culminou com a perda do que viria a ser o Novo México e o Arizona. Entre 1824 e 1867, foram 22 os presidentes do México, poucos dos quais assumiram o poder por vias sancionadas pela lei.
A consequência dessa instabilidade política sem precedentes para as instituições e incentivos econômicos deveria ser óbvia. Tamanha inconsistência acarretou profunda insegurança com relação ao direito à propriedade, bem como grave enfraquecimento do Estado mexicano, que agora dispunha de pouquíssima autoridade e capacidade de aumentar a arrecadação ou assegurar a prestação de serviços públicos. Com efeito, muito embora Santa Ana fosse presidente do México, vastas parcelas do país não se encontravam sob seu controle, o que possibilitou a anexação do Texas pelos Estados Unidos. Ademais, conforme acabamos de ver, a força motriz por trás da declaração de independência mexicana foi o desejo de proteger o conjunto de instituições econômicas desenvolvidas durante o período colonial, que havia feito do México, nas palavras do grande explorador e geógrafo da América Latina, o alemão Alexander von Humbolt, “o país da desigualdade”. Tais instituições, ao erigirem a sociedade sobre a exploração dos povos indígenas e a criação de monopólios, bloquearam os incentivos econômicos e iniciativas da grande massa da população. Assim, enquanto os Estados Unidos começavam a passar pela Revolução Industrial na primeira metade do século XIX, o México empobrecia.
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