Carta aos que ficam

Renda-se, como eu me rendi. Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. - Clarice Lispector


             O que dizer se não tenho a mínima ideia do que é morrer estando vivo, a morte definitiva só se morre uma vez. Enquanto escrevo isso, penso eu ainda estar vivo, claro, desprezando todos conceitos de que morremos em vida quando deixamos de ter algo, de experimentar algo. Para os que estão felizes, pensar na morte é besteira, para os que estão sofrendo, pensar na morte é um refúgio. Hoje eu me vejo em pleno vapor da vida, numa idade jovem de 26 anos, aparentemente não acometido de nenhuma doença, apenas alergias que me acompanham já fazem alguns anos, tenho comido boas refeições, tenho bebido boas bebidas, me relacionei com algumas belas mulheres, conheci lugares legais, pessoas diferentes e pessoas especiais, conheci algumas histórias emocionantes, presenciei cenas marcantes, comprei, vendi, ganhei, chorei e sorri bastante, mas apesar de ter feito tudo isso, ainda tenho em mim o sentimento de que ainda falta mais, a vida continua, que a vida ainda me prepara muito mais, e acho que isso faz parte do sentido de viver, a esperança de coisas novas, coisas melhores, coisas absurdas que nos surpreendam, nos deixem perplexos ou nos excitem, esperamos o êxtase, esperamos o ápice, o clímax, mas esquecemos que após isso vem o declínio, a baixa, o vetor negativo, depois de subir muito alto, a tendência é descer. 

      Por isso, não tenho pressa de chegar a topo, não tenho pressa de chegar ao ápice, porque a vida é mais legal quando a gente sente que ainda tem mais para subir, que ainda falta muito. Eu quero gastar muito dinheiro ainda em uma noite só, eu quero ter o sexo mais selvagem que alguém fez, eu quero pular de pára-quedas, eu quero ir ao fundo do mar, eu quero conhecer vulcões, ruínas, cidades e florestas, ainda quero muito oras, porque ainda não sinto que já posso morrer, porque enquanto escrevo isso, eu tô vivo, eu tô vivo porra! Eu tenho vontade de ir ao banheiro, eu sinto prazer em um bom banho, eu gosto de sentir as flores caindo em cima de mim das altas árvores de sibipiruna aqui no bairro do Itatiaia, eu gosto de reclamar do calor, da chuva, do frio, do vento e da falta de cada uma dessas dádivas da natureza.

Mas como não tem como falar da minha morte após eu tê-la a encontrado, aqui deixo considerações como lembranças para aqueles que se importaram comigo, e que de alguma forma a minha existência foi relevante para si, amigos e parentes, não tenho mulher e filhos, não tenho nem bichinho de estimação embora gostaria muito de ter tido todas essas coisas. Não sei se conseguiria deixar alguma coisa valiosa materialmente, visto que não construí nada, o que tenho foi basicamente para custeio da minha existência. Tenho uma bike estragada que comprei do meu amigo Alexandre Arroyo, tenho roupas nada chiques, muitas delas com furos de manchas, um computador onde escrevo meus textos e faço meus estudos, computador doado pelo querido professor Marcelo Passos, do curso de economia da UFPEL. Tenho um dinheiro pra receber de um consórcio que fiz e deixei de pagar na Disal Consórcios, de um carro muito lindo chamado Kwid, infelizmente não consegui continuar pagando com meu pequeno   salário de estagiário que mora de aluguel. Tenho a casa que mamãe deixou em Senador Canedo, Rua 27 Quadra 5 Lote 12, Residencial Anuar Auad, não terminamos de pagar o terreno com a imobiliária, o terreno está sem muros, está aberto a deus dará, se não me engano não paguei o IPTU de 2020 e a água e energia estão cortadas, essa casa foi arrombada várias vezes e as janelas estão apedrejadas. Enfim, de bens materiais não tenho nada, apenas desejos de realizar e concretizar. 

    Se eu morrer hoje, espero ter deixado no coração de cada amigo, de cada conhecido, de cada colega e de cada familiar um pouco do meu afeto e dizer que a vida é tão rara, tão singular e tão valiosa. Morrer é uma fatalidade que nos acometerá, mas não é preciso morrer pra ver Deus, não é preciso experimentar a morte para saber o quanto foi uma dádiva ter tido a experiência de viver. Acaba que a morte é realmente sentida pelos que ficam, ficam com as emoções e a consciência do que se passou e não mais acontecerá. Como dizer, a morte pode ser um fim, mas também é o recomeço de outras vidas que vão surgindo nesse mistério maravilhoso que é o universo. 


INSCRIÇÃO PARA UM PORTÃO DE CEMITÉRIO

Na mesma pedra se encontram,
Conforme o povo traduz,
Quando se nasce - uma estrela,
Quando se morre - uma cruz.
Mas quantos que aqui repousam
Hão de emendar-nos assim:
"Ponham-me a cruz no princípio...
E a luz da estrela no fim!"

Mario Quintana

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