PARA ENTENDER O MUNDO FINANCEIRO


      Apesar de misterioso e assustador, todos nós frequentamos o mundo das finanças do mesmo modo que frequentamos o dos sonhos, os que sonhamos acordados, fazendo projetos para o futuro. Desde que temos noção da passagem do tempo, que aprendemos a distinguir passado de futuro, este último povoa nossas mentes. Sabemos que temos um futuro e que este futuro será, de alguma forma, construído por nós. Ter planos para o futuro norteia nossas vidas, confere sentido e propósito a nossas decisões. O velho Marx achava que o traço que distingue o trabalho humano da atividade instintiva dos animais era exatamente esta capacidade de sonhar acordado, de construir na mente projetos antes de concretizá-los na realidade. 

Uma aranha realiza operações que se assemelham às do tecelão e uma abelha envergonha alguns mestres-de-obras humanos com a construção de seus favos de cera. Mas o que distingue de início o pior dos mestres-de-obras da melhor abelha é que ele construiu o favo na sua cabeça antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho surge um resultado que no início do mesmo já existia na imaginação do trabalhador, portanto já tinha existência ideal.*

      Na sociedade capitalista, os futuros individuais dependem de projetos sociais, a grande maioria sonha com futuros que só podem se realizar se houver apoio, favorecimento, ajuda, compartilhamento, participação de outros. Isso vale para a mocinha que sonha casar e ter filhos, para o rapaz que almeja cursar a universidade, para o político que pretende disputar eleições, para o pequeno empresário que sonha com o grande prêmio da loteria para poder pagar suas dívidas. 

     Cada um procura realizar seu sonho mediante a conquista da confiança dos outros, cujo apoio lhe parece indispensável. O mundo financeiro surge como a arena em que os projetos de muitos disputam a confiança e o apoio dos demais. Confiança e apoio que tomam em geral a forma de empréstimo de dinheiro, de crédito. No relacionamento econômico cotidiano, cada um solicita crédito e é solicitado. Só as pequenas transações são liquidadas a vista e portanto dispensam relações de confiança entre os envolvidos. 

    Quando se aluga uma moradia, se entra num emprego ou se “paga” uma compra com cheque ou cartão de crédito, é imprescindível que haja crédito, que o locador, o empregado e o vendedor confiem no inquilino, no empregador e no comprador, pois entre prestação e contraprestação decorre um intervalo de tempo, que implica a possibilidade de que a contraprestação não se verifique. 

    Portanto, todos nós participamos do mundo financeiro à medida que estamos dando e recebendo crédito quase todo dia. Esta é a pequena finança ou finança corriqueira, que está tão bem incorporada à nossa rotina que nem sequer a percebemos como algo distinto em nosso comportamento econômico. Há, por outro lado, a grande finança, o financiamento de inversões industriais, comerciais ou tecnológicas, as fusões de multiempresas e a cisão de outras, as oscilações do valor das ações nas bolsas de valores, a fixação de nova taxa básica de juros pelo banco central, o lançamento de novos fundos de investimento, de novas loterias, de novas modalidades de seguro e assim por diante. A pequena finança e a grande finança convivem e interagem no mundo financeiro. 

     Quando movimentamos nossas contas bancárias ao depositar o salário ou pagar a escola das crianças estamos criando ou destruindo ativos financeiros, formas de riqueza fictícia que lastreiam as operações da grande finança. Nossa renda não gasta imediatamente, ou seja, nossa poupança, depositada num banco ou caderneta de poupança, serve para tornar o sonho de alguém – que possui crédito – possível. Para ter crédito junto a bancos e outros intermediários financeiros é preciso poder dar garantias, portanto é necessário ter propriedades ou obter a confiança de alguém que as tenha e que avalize o seu pedido de crédito.


No capitalismo, só os sonhos dos ricos têm vez no mundo financeiro. Os não-ricos com sua poupança viabilizam (sem saber) os sonhos de alguns ricos. O fato é que há muito mais sonhos à procura de crédito do que ativos financeiros para viabilizá-los. No mundo prosaico dos negócios não se fala de sonhos mas de projetos e o esforço dos aspirantes a crédito é de realçar suas características racionais, suas probabilidades bem calculadas de êxito. Não obstante, cada projeto não passa dum sonho, duma construção de espírito, como o favo na cabeça do pior dos mestres-de-obras de Marx.

O mundo financeiro é o lugar em que confluem os rendimentos não utilizados pelos que sabem que não tendo riqueza não têm chance de obter crédito para realizar os seus próprios sonhos; e os projetos dos que têm posses que podem funcionar como garantias. As poupanças da sociedade estão concentradas nas mãos de grandes bancos e fundos, cujo trabalho consiste em examinar pedidos de crédito, reunir informações que permitam analisá-los, avaliar suas chances de sucesso e os riscos de que malogrem. Ao final de cada dia, alguns projetos são financiados, outros são recusados, outros ainda são objetos de mais negociações. 

Mas é preciso olhar o mundo financeiro também dum outro ângulo, o das necessidades objetivas da economia capitalista. Esta produz valor, que é distribuído entre trabalhadores, capitalistas e governos. Uma parte deste valor tem que ser acumulado, ou seja, convertido em nova capacidade produtiva. A acumulação de capital exige financiamento simplesmente porque seria oneroso demais transacionar os meios de produção todos à vista. A economia capitalista exibe dinamismo exatamente porque os detentores de capital se dispõem a correr riscos, a apostar no futuro. Sem projetos, o único investimento que haveria seria para repor a capacidade produtiva inteiramente desgastada. 

O capitalismo, como a história o revela, é também uma fábrica de sonhos, tanto empresariais como políticos, culturais, científicos... O mundo financeiro, exatamente por lidar com sonhos, assume uma feição de extrema racionalidade, prudência, ceticismo, cuidado e previdência. O banqueiro tem que inspirar confiança antes de mais nada aos depositantes. Estes correriam a sacar seus haveres se suspeitassem de que seu dinheiro estava sendo repassado a sonhadores, a solicitantes de crédito cujos projetos podem dar certo ou não.

Por suposto, o banqueiro, assessorado por especialistas e vastos bancos de dados, tem capacidade para distinguir projetos-realidade dos projetos-sonho, premiando os primeiros com os recursos confiados a sua guarda e rejeitando os últimos. Tudo indica que as aparências são enganadoras. 

     No capitalismo, todos os projetos são sonhos porque em mercados competitivos todos os agentes agem com autonomia e guardam segredo sobre seus projetos. Não há nem pode haver coordenação entre eles. Não obstante, o êxito de cada projeto a ser financiado depende de que projetos, que lhe são complementares, também obtenham crédito e que projetos, que concorrem com ele, não o obtenham. Mas o “banqueiro”, com toda sua assessoria, não tem a informação relevante. Ele não sabe que outros projetos estão sendo aceitos ou recusados. Por isso, ao conceder créditos a certos projetos, o “banqueiro” dá um salto no escuro, banca uma aposta no futuro, que ele pode ganhar ou perder.   


 

    O mundo financeiro é regido pela lei do acaso. Alguns sonhos conquistam crédito, recebem da sociedade, na pessoa do intermediário financeiro, licença para tentar se tornar realidade. Outros sonhos continuam sendo sonhados. Os sonhos tornados projetos viram novas empresas, novos produtos, novas técnicas ou novas candidaturas, novas pesquisas tecnológicas, novos filmes ou peças de teatro. 

     Na medida em que se agregam ao mundo econômico ou político real, geram empregos, mercadorias, rendas, impostos. E desta forma se viabilizam reciprocamente. Um único sonho tornado projeto dificilmente teria espaço econômico para conquistar clientela. Uma massa de projetos amplia a economia de mercado, e ao distribuir renda a numerosos agentes cria clientela para os novos projetos.

Há boas razões para crer que, quanto mais sonhos ganham permissão social para se realizar como projetos, tanto mais deles têm sucesso. Ora, o número de sonhos premiados pelos banqueiros depende essencialmente do seu maior otimismo ou pessimismo quanto ao futuro. É claro que um bom número de sonhos improváveis, que se baseiam em pressupostos pouco confiáveis, são rejeitados pela análise técnico-financeira do banco. Mas sempre sobram muitos sonhos que apresentam boas chances de sucesso, mesmo porque os mais ambiciosos são apresentados por grandes empresas que possuem sua própria assessoria de alto nível. 

     O número de projetos considerados viáveis que são efetivamente financiados depende não só do montante de poupança disponível mas da predisposição subjetiva do “banqueiro” de correr mais ou menos riscos. Se o “banqueiro”, como representação de todos os intermediários financeiros, estiver disposto a correr mais riscos ele tem a possibilidade de expandir o valor dos créditos a serem concedidos. Esta é uma das qualidades mais importantes e mais enigmáticas do mundo financeiro. É que o ativo financeiro pode ser multiplicado pela alavancagem, ou seja, pelas transações financeiras entre os próprios intermediários. 

     De modo que, quando o “banqueiro” vê o mundo com lentes róseas, convicto de que no futuro a economia vai crescer etc., ele estende crédito a mais sonhos e com isso ele aumenta as chances de todos de dar certo. O “banqueiro” tem o poder misterioso de tornar realidade suas antevisões. Ao multiplicar os ativos financeiros e acelerar a acumulação do capital, o “banqueiro” faz com que efetivamente a economia cresça e que pouquíssimos projetos financiados malogrem.

     Neste ponto, o leitor teria todo o direito de perguntar: “Então por que os intermediários não ficam sempre otimistas, transformando o máximo de sonhos em projetos e fazendo com que a maioria deles dê certo?” Há várias razões. Uma é que o otimismo no mundo financeiro é contagioso e auto-acelerador. Ele dá lugar a alta dos valores e a um descolamento deles da economia real. Em algum momento a distância entre o mundo virtual das finanças e o mundo das mercadorias que têm valor de uso se torna excessiva. A crença no futuro entre os aplicadores financeiros desaba, muitos tentam converter seus ativos financeiros em reais, o que só se torna possível através da desvalorização dos primeiros. O boom se transforma em crise, o otimismo vira pessimismo e o “banqueiro” reduz drasticamente o número de sonhos que ele se dispõe a financiar. 

    Outra razão é que a alta financeira é algumas vezes interrompida por mudanças políticas, internas ou externas ao país. Os intermediários financeiros são muito sensíveis a ameaças políticas, verdadeiras ou supostas, a seus interesses. Algumas vezes basta a morte dum mandatário ou o apoio popular a alguma candidatura vista como hostil para que o otimismo do “banqueiro” se evapore.  

    Outras vezes, o estouro duma crise financeira em outro país contagia o banqueiro, levando-o a encolher o crédito. Em todos estes casos, a descrença no futuro acaba se justificando. Quando a maior parte dos sonhos é recusada pelo “banqueiro” a economia deixa de crescer e os poucos projetos financiados correm grande risco de fracassar. O malogro dos projetos reforça o pessimismo do “banqueiro”, tornando-o ainda menos propenso a arriscar os fundos que lhe foram confiados em novos sonhos, os quais são substituídos nas mentes dos empresários pelo pesadelo da inadimplência, da incapacidade de honrar as obrigações com fornecedores e banqueiros.

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